Depois de um pequeno
período de férias (na verdade, várias viagens, compromissos e percalços), o
DOUTOR POIZÉ retorna a seu consultório para iniciar as consultas de 2016. Para
marcar essa retomada, segue uma consulta dupla, com dois trabalhos de um mesmo
artista. Trata-se das HQs Privilégios
e Outras Histórias e Teto Quadro Chão, do autor
paulista Gus Morais.
O elo que une as
duas publicações, além de serem do mesmo autor, é o fato de que são publicações
independentes, com histórias curtas, e que coleta o material publicado no seu
blog gusmorais.com. (PEOH cobre
as publicações de 2010/2012 e TQC as de 2012/2015).
Ler os dois
trabalhos é uma oportunidade interessante de acompanhar o desenvolvimento da
abordagem artística de Gus, além da maturidade e do domínio do ofício que vai
se revelando ao longo da sua trajetória. Fica bem nítido o desenrolar de um
processo criativo e das tomadas de decisões que o levam em direção a uma
assinatura autoral.
No princípio, tudo
era caos, no melhor dos sentidos: Privilégios... experimenta diversas saídas
gráficas, diferentes traços, paletas de cores, temáticas. Já Teto Quadro Chão, mesmo ainda distante do que
podemos chamar de “estilo próprio”, apresenta um foco mais preciso.
Na verdade, entre a
variação e o foco, existe algo que seja certo ou errado? Se pensarmos de
maneira geral, tanto quem elabora um trabalho mais eclético quanto quem tem um
foco mais delimitado perde e ganha em alguma medida. Os jovens artistas
costumam ousar mais, mas em determinado momento existe uma expectativa de que a
escolha seja feita. Há o tempo das descobertas e o tempo das das
singularidades. Existiria um prazo para cada um deles?
E será que é mesmo
necessário escolher? Lembro aqui a letra de um antigo hit do Rush, Freewill: “não escolher pode ser uma
escolha”. Ao que parece, Gus Morais tem deliberadamente adiado o derradeiro
momento da singularidade, sem que isso comprometa seu trabalho. Na verdade, é
muito interessante ver como ele passeia entre diferentes técnicas e abordagens.
Por um lado, o artista ganha com o acúmulo de experiências que vem da falta de
uma zona de conforto; e, por outro, o público leitor se mantém surpreendido.
Boa parte das
histórias de Gus lidam com uma matéria prima simbólica, funcionando como se
fossem metáforas psicológicas de vários fenômenos familiares da vida. Histórias
como “Consumido” ou “99% das Coisas do Mundo” funcionam nessa sintonia, e me
lembrou um pouco as alegorias de obras como The
Wall: a cena em que os estudantes caem na máquina de moer carne poderiam
figurar tranquilamente nas duas HQs resenhadas nessa consulta.
Gus assume um tom de
crítica à dinâmica da sociedade, ao modus
operandi do sistema; contudo, a forma do discurso que ele adota é quase
sempre poético. O roteiro das suas histórias é precioso, repleto de insights fantásticos e muito peculiares.
Mesmo quando não há texto (e há diversos trechos mudos, onde a ação é apenas
gráfica), o senso de narrativa e o sentido dos acontecimentos são bastante
elaborados.
E a parte gráfica
funciona muito bem, passa o recado, sem virtuosismos ou excessos. As cores
assumem um papel bem importante na maior parte das histórias, mesmo aquelas que
apresentam paletas bem sintéticas. Em Privilégios,
o traço de Gus é mais limpo e mais primário, enquanto que Teto Quadro Chão tem uma pegada mais suja, mais sofisticada e
intensa.
Gus é um autor que pensa os quadrinhos de maneira integral. Desde o
roteiro, passando por todos os aspectos gráficos, como o layout das páginas, o
estilo do traço, a diagramação, o uso das fontes... Diante dos resultados, fica
evidente a imensa reflexão que se operou antes mesmo do trabalho começar. E o
resultado é poesia gráfica, uma dança onde texto, conceito e arte criam um
sentido outro, sempre instigante.
Quanto a cada uma das histórias, a riqueza das abordagens e a vastidão
dos temas torna complicado a tarefa de dissertar sobre uma a uma. A resenha
ficaria um bocado grande. Mas tomo a liberdade de citar uma das histórias,
chamada Privilégios - que obviamente batiza o primeiro volume
(e o encerra). Ela é digna de nota por seu conteúdo extremamente pessoal, e que
só não emocionará aos leitores cujo coração já estiver um tanto quanto
petrificado.
Diagnóstico: Nesses dois trabalhos de Gus Morais, o leitor certamente encontrará
material de alto nível, com uma sensível e singular visão de mundo. Através das
metáforas críticas e poéticas do autor, compartilhadas conosco no suporte dos
quadrinhos, nós talvez não retornemos a enxergar as coisas da mesma maneira de
antes. Desses benefícios que a arte sincera e inspirada nos traz.