O documentário A Skin To Few foi
traduzido como “uma pele a menos”. Mas, se tratando de uma obra dedicada ao
compositor britânico Nick Drake, me
pareceria mais adequado aludir à ideia de uma pele fina, curta, talvez escassa.
Ainda sobre o nome do filme, vale dizer que, diferente de vários documentários
de músicos e poetas – onde os títulos remetem a alguma frase ou imagem típica
da obra do documentado – essa metáfora da pele vem de um poema de Molly Drake,
mãe de Nick, sobre seu filho (spoiler não comprometedor: é o momento que fecha
o documentário, e pode fazer chorar as almas mais sensíveis).
A relação familiar de Nick é essencial
para o documentário, uma vez que, aparentemente, não há muito mais a se dizer
sobre ele. Seu legado documentado é o sonho de muitos artistas mais arredios,
da estirpe de um Salinger: Nick Drake existe como uma voz poética, existe
dentro de suas músicas. O vazio em torno de Drake está para o folk inglês assim
como Robert Johnson está para o blues americano. A falta de registros em vídeo,
a escassez de fotos e entrevistas, tudo isso acaba inevitavelmente colocando a
obra nos holofotes. A pessoa por detrás não passa de uma imensa lacuna. Há
algumas poucas correspondências, e só.
Assim, o documentário resgata as vozes
dos familiares de Nick, entrevistas com os seus pais, e, principalmente, sua
irmã Gabrielle Drake, cuja presença e dicção revelam-se imprevisivelmente
magnéticas. Podemos reconhecer nela a mesma beleza do falecido irmão, e, a
partir de sua presença, deduzir e imaginar muito da sagacidade, inteligência e
charme que Drake deveria ter.
Da mesma forma, quando Gabrielle toca
uma fita cassete de sua mãe Molly tocando piano, reconhecemos muito da lírica e
das harmonias que fariam Nick soar tão original. Por todos esses depoimentos e
recordações familiares, podemos, em algum nível talvez inconsciente, montar uma
ínfima parte do quebra cabeça que é Nick Drake. Ele é lacunar, e não apenas por
sua morte precoce, mas também por seu silêncio.
Gabrielle conta que chegou a morar com
o irmão em Londres durante um tempo, e, certo dia, ele simplesmente entra no
quarto da irmã, e mostra a ela a capa do disco que gravou. Ao longo do filme, é
possível deduzir que os discos de Nick representam seu projeto de vida, o
sentido de suas ações. Contudo, ao apresentar o resultado disso para a irmã,
ele simplesmente diz “aqui está”. E ela, que desconhecia completamente que o
irmão gravava um disco, fica entre pasma e deslumbrada.
Os três discos que Nick lança em vida
seguem um pouco da instrumentação e do clima folk da época, com muitos
instrumentos barrocos, cordas, bateria e baixo em alguns momentos. Mas o clima
soturno atemporal, marca registrada de suas canções, acaba acentuado pelos
produtores. Foi interessante perceber que o produtor dos discos de Drake é Joe
Boyd, que também produziu o Pink Floyd nos seus primeiros dias. Antes de ter
contato com Nick, Boyd já teve que lidar com outro compositor amargurado e
auto-destrutivo, Syd Barrett. Ainda assim, ele reconhece que não teve o devido
tato para aconselhar e dizer algo positivo para o autor de Pink Moon.
Ao que parece, Nick se distanciou
demais do mundo real, das pessoas ao seu redor, e passou a conviver
exclusivamente com as vozes em sua cabeça, a viver dentro de sua arte. Os
relatos de conhecidos nos mostram alguém distante, solitário, que era flagrado
as vezes olhando para a parede, ou tocando o mesmo acorde no violão por horas a
fio. Uma tentativa de turnê acabou se tornando um desastre total. Nick parecia
incapaz de gerenciar a própria vida, e de cumprir com as demandas e a agenda
que uma vida concreta exigem.
Outro momento arrepiante é quando sua
irmã compartilha uma das falas de Nick, pouco antes de morrer, onde ele se
lamentava sobre o desejo de querer que sua obra alcançasse pessoas que realmente
precisavam de alento. Em parte, sua tristeza vinha do fato de que seus discos
pareciam estagnados, e ele não encontrava forças para ser o divulgador que sua
obra merecia. Apenas sua morte precoce - e o mito que foi erigido a seu redor - foram capazes de fazer circular seu trabalho. Hoje em dia, ele é reconhecido
como um dos grandes compositores do séc. XX, e seus três discos costumam ser
incluídos nas listas de melhores de todos os tempos de revistas como Rolling Stone e TIME.
Diagnóstico: A Skin Too Few é
um belo retrato de uma alma desconhecida, que podemos captar através de ecos,
mas nunca ouvir diretamente. O que chega a nós é pura poesia, as vezes
melancólica, mas sempre arrebatadora e sublime. A obra evita o tom meramente
documental, jornalístico, optando por uma dicção poética. Assim, o que o filme
perde em aspectos históricos e cronológicos, ganha em beleza. Tal opção do
diretor Jeroen Berkvens é totalmente fiel à vida e obra de Drake. O fim do
filme, com o já citado poema de sua mãe, seguido de uma tomada bucólica das
árvores vistas de cima (ao som da balada Northern
Sky) é um assombro de beleza.
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