sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

No Estetoscópio: Roger Waters The Wall (2015)


Estou ainda absorvendo o impacto de assistir a recriação de The Wall feita por idealizador e, praticamente, o criador maior da criatura, senhor Roger Waters. De fato, essa nova versão do espetáculo surpreenderá o espectador desavisado, que acredita que o ex-Pink Floyd apenas atualizou a obra de 1979 com recursos do presente. A resposta é: sim, e não. 

Se nos voltamos para o aspecto sonoro, podemos ouvir muito da obra original ali. Apesar de alguns detalhes e mesmo algumas faixas novas (como uma balada feita para o brasileiro Jean Charles de Menezes), a maior parte das músicas tenta reproduzir os arranjos e timbres do disco duplo de estúdio. Por outro lado, o aparato tecnológico introduz um elemento visual tremendamente inovador, tanto no aspecto de produção, quanto no próprio conceito de The Wall.

Se, tanto no disco de 79 quanto no filme feito por Alan Parker em 82, a narrativa trata de um rock star atormentado pela adulação e idolatria à seu redor, o The Wall do século XXI retoma e escancara um dos ganchos já presentes no original: a perda de uma perspectiva emocional pela qual passam as vítimas (diretas e indiretas) das intervenções militares do estado. Essa nuance do filho órfão de um soldado morto no front já tinha servido como mote principal para The Final Cut – inclusive, muitos dos elementos autobiográficos do último disco de Waters com o Pink Floyd foram retomados no novo trabalho recriado.

 

O filme oscila entre cenas de vários shows da turnê The Wall – feita entre 2010 e 2013, e que foi a mais lucrativa turnê do mundo em 2012 – e cenas de Waters visitando os túmulos de seu pai e seu avô (o primeiro, morreu lutando na 2ª Guerra Mundial; e o outro, na 1ª). Tanto as cenas extra-show quando as novas imagens projetadas no imenso muro que perpassa o palco da turnê envolvem críticas sobre as guerras e as intervenções militares. A partir da dor causada por sua experiência pessoal, Waters erige um libelo musical contra à violência – destacando o atual contexto de xenofobia, terrorismo e ataques das grandes potências à países do oriente médio.

Geralmente, filmes de turnês de artistas diversos envolvem cenas de shows, entrecortadas por tediosas e toscas filmagens de bastidores, com direito a brincadeiras de camarim, piadas internas, e constrangimentos diversos (encontros entre o artista e políticos locais, choques culturais, etc.). Bem, acho que todo o marketing feito no lançamento deste novo The Wall deixou claro que não é o caso aqui.

Waters e o co-diretor Sean Evans realmente fazem um filme, dirigido em seus mínimos detalhes. As cenas internas e externas são todas costuradas por um olhar estético burilado, com cada ângulo, cor e enquadramento milimetricamente estudados. Logo fica claro que, para alcançar tal resultado nas cenas em que o baixista dirige por paisagens francesas e italianas, há muito de encenação ali. A edição com múltiplas câmeras e os travellings presentes nos diálogos com diversas pessoas deixam claro que não há nada espontâneo nesses trechos. E muito menos no show, que parece ter sido ensaiado não só no aspecto musical, mas também na pose e, principalmente, na sincronia entre os instrumentos e as intervenções visuais.

 

As imagens projetadas no muro são impressionantes, e confesso que nunca havia visto um show funcionar de maneira tão impecável com algo dessa magnitude. The Wall não se tornou “o” show de 2012 a toa: ele simplesmente inaugura um alto nível de produção para mega shows, que vai demorar pelo menos uns dez anos para ser alcançado pelas demais bandas e artistas.

Além do conceito da crítica à guerra, acredito que dois elementos foram capazes de costurar, de maneira eficaz, essas duas dimensões do filme (cenas de show e cenas de viagem). Um deles é o caráter teatral, muito evidente no show, e também presente nas cenas externas (sobretudo quando Waters tem “visões” estranhas entrecortando o que supostamente seria uma filmagem de tons realistas). O outro é a grandiloquência, característica costumaz na obra do ex-Floyd, e que, nesse filme, se encontra profundamente intensificada.

Não bastasse sobrepor sua história pessoal ao drama central do filme, Waters acaba não assumindo o menor pudor em se colocar como um protagonista onipresente, para além da mera presença física. Desde a cena em que ele chora ao ler um depoimento de guerra, passando pelo dueto que faz consigo mesmo no palco (sim, graças à tecnologia, o Waters do séc. XXI canta com sua versão de 1980 projetada no muro), até uma pitoresca cena onde ele tenta contar para um garçom francês (que não fala sua língua) como seu pai morreu na guerra. Contudo, se os detratores do ex-líder do PF tem hojeriza de sua egolatria, seus admiradores certamente irão apreciar a maneira grandiosa com que ele afirma a si mesmo e sua obra ao longo do filme.

 

Diante disso, é importante pensar que The Wall é uma obra que se leva a sério, incorrendo em todos os vícios que fizeram o rock progressivo ser atacado pelo punk em meados dos anos 70. O aspecto pomposo e afetado assumido em todo o trabalho parecerá artificial para alguns. Mas devo dizer que não há nada de anacrônico nessa nova recriação de Roger Waters. Primeiro, pela sua corajosa temática, que não poupa os grandes estados nacionais de generosas e justas críticas. Depois, por não ter receio de retomar todo o vocabulário onde suas composições melhor brilham (sem contar que, a partir de 2010, o gênero progressivo tem tido uma considerável redescoberta pelas novas gerações).

São poucos artistas do mercado de massa apontando a triste vocação dos estados nacionais em afirmar sua hegemonia a qualquer custo – como disse Zygmunt Bauman, os estados-nação não guardam espaço para um “outro”, apenas para os seus, preferindo aniquilar qualquer entidade que questione sua legitimidade intrínseca. 

O absurdo da guerra não é um tema que parece comover a longa e barulhenta festa do showbusiness – exceto quando se trata de artistas como Roger Waters (além de uma curta, porém seleta lista, que envolve gente como Crosby, Stills, Nash & Young; Morrissey, e alguns poucos).


Diagnóstico: é um filme longo, que pode parecer cansativo, uma vez que pretende mostrar tanto o show na íntegra (de um disco duplo) como cenas de bastidores. Porém, a densidade da obra é bela, legítima, bem estruturada, e agradará em cheio aos fãs da lírica de Waters e do Pink Floyd. 

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